O futuro da TV paga é um risco maior ao audiovisual nacional do que o TCU
Samuel Possebon
Teletime
Não há dúvida de que, entre as prioridades do setor audiovisual e da Ancine, o Acórdão do TCU sobre a metodologia Ancine + Simples e seus impactos de curto e médio prazo no Fundo Setorial do Audiovisual estão no topo da lista. Sem que o entendimento do TCU mude ou que a agência consiga responder adequadamente ao que o Tribunal de Contas postulou, é inevitável que o fundo fique parado, até pelo receio dos servidores e dirigentes da agência de liberarem recursos sem a garantia de que o TCU não os responsabilizará. E, ainda assim, permanece o problema do passivo de projetos que terão que ser analisados novamente, sob uma nova metodologia.
Mas se este é um problema urgente, o mercado audiovisual precisa seriamente começar a pensar em um problema talvez bem mais complexo e importante: a sustentabilidade do modelo atual, o que inclui as fontes de abastecimento do FSA, o foco dos investimentos e os mecanismos e plataformas de escoamento da produção.
O mercado audiovisual brasileiro, tal como o conhecemos, está intimamente ligado ao setor de telecomunicações. A razão para isso é a Lei 12.485/2011, ou Lei do SeAC, que regula o mercado de TV por assinatura. Esta lei não apenas estabeleceu os mecanismos de cotas de presença nacional nos canais e pacotes de TV paga, o que deu vazão a um grande volume de conteúdos produzidos, como, sobretudo, criou o principal mecanismo de financiamento do setor: o pagamento da Condecine pelas empresas de telecomunicações. Por exemplo, cada acesso de celular existente no Brasil, mesmo que pré-pago, gera uma contribuição de R$ 3,22 por ano para o setor audiovisual. Em 2018, foram R$ 1,2 bilhão das teles para a Condecine, que por sua vez vai para o FSA. Cerca de 90% dos recursos do fundo estão na chamada Condecine-Teles.
Mas existe uma série de fatos importantes que podem mudar essa lógica radicalmente no horizonte de no máximo quatro anos. São vários movimentos em curso que, se olhados individualmente, já seriam muito importantes. Olhados em conjunto, evidenciam que o setor audiovisual tem um grande desafio pela frente. Vejamos:
1) As cotas de conteúdos nacionais da Lei 12.485 expiram em setembro de 2023, daqui a pouco mais de quatro anos. Ou seja, o debate sobre a sua renovação ou não precisará começar, necessariamente, ainda neste governo Bolsonaro, que não tem mais um ministério dedicado à Cultura e ainda não instalou o Conselho Superior de Cinema. (Possível complicador: a Lei do SeAC, na parte que trata de telecomunicações, não pode ser reformada por Medida Provisória).
2) Mas mesmo que o setor audiovisual não provoque um debate sobre a revisão a Lei do SeAC, a lei seguramente será mexida antes de 2023, simplesmente porque o modelo de TV por assinatura é o que mais tem sofrido com a transformação da oferta de serviços pela Internet, os serviços OTT (over-the-top). O Netflix já tem no Brasil tantos ou mais assinantes quanto a Net, por exemplo. A Anatel já colocou sua posição: “A lei do SeAC caducou” (palavras do presidente da agência Leonardo Euler, em fevereiro).
3) A Net, maior operadora de TV por assinatura tradicional e uma das maiores provedoras de serviços de vídeo-sob-demanda (VoD), está questionando na Anatel se as programadoras de TV paga podem oferecer canais lineares diretamente ao consumidor mediante assinatura, ou não. Alega que para fazerem estas ofertas, as programadoras deveriam prestar o serviço de TV paga, regulado pela Anatel e regido pela Lei do SeAC.
4) Se a Anatel der razão à Net, certamente as programadoras internacionais e empresas nacionais de conteúdo (Abert e Abratel estão muito atentas a este caso), que hoje apostam fortemente no modelo “direct-to-consumer”, vão pressionar para mudar a lei, pois seria inimaginável para elas se submeterem às regras do serviço de TV paga para venderem conteúdos diretamente ao assinante. Aliás, os radiodifusores nem poderiam, por conta das restrições de propriedade cruzada impostas pela Lei do SeAC.
5) Se a Anatel não der razão à Net, a operadora certamente vai buscar um caminho fora do SeAC. Será, em pouco tempo, uma operadora OTT (com a vantagem de ser a maior operadora de banda larga fixa do Brasil e, com a Claro, ter a segunda maior base de usuários móveis). E sendo OTT, não precisa cumprir as cotas de canais independentes. Com essa transição da maior operadora do mercado para o mercado OTT, a lei do SeAC será tão relevante quanto uma lei regulando o mercado de bondes.
6) As outras teles certamente irão no mesmo caminho, e suas estratégias atuais de distribuírem canais pagos desempacotados, por meio de aplicativos, pelo celular, indica que esta estratégia de migração já começou.
7) Relembrando que no modelo de distribuição pela Internet, caso ele seja considerado regular pela Anatel, não é preciso cumprir as cotas da Lei do SeAC, nem a distribuição de canais obrigatórios e nenhuma das obrigações regulatórias atuais. E ainda se paga apenas o ISS, e não o ICMS. Ou seja, há fortes incentivos para que o SeAC deixe de existir na prática.
8) É verdade que o conteúdo nacional se tornou relevante na TV paga e hoje até supera a exigência legal das cotas. Ótimo para o audiovisual brasileiro, que mostrou ser relevante. Mas isso também será mais um motivo alegado para não renovar a obrigação das cotas prevista em lei.
9) Paralelamente a esta discussão sobre modelos OTT vs. tradicionais, Anatel e a Ancine também estão debruçadas sobre a fusão AT&T/Warner Media. A sinalização até aqui na Anatel, emanada pela área técnica da agência e pela procuradoria, é que a fusão fere as restrições de propriedade cruzada da Lei do SeAC (artigos 5 e 6). A Ancine tinha este entendimento, mas não se sabe se o manterá. É uma restrição que está na contramão do que acontece em outros países e nos movimentos globais de consolidação, mas enquanto a lei estiver valendo, terá obviamente que ser cumprida.
10) Lembrando que a AT&T comprou a Warner Media justamente para poder ter uma máquina de produção de conteúdos exclusivos, como fazem a Netflix, Amazon e agora Apple. A Comcast já havia feito o mesmo com a Universal em 2009. A Telefônica iniciou esta semana um movimento global no sentido de se tornar uma produtora de conteúdos, exceto no Brasil, por conta da restrição legal.
11) A AT&T ainda acredita que reverterá a situação. Mas se persistir a interpretação de veto à operação, a AT&T terá que vender a Sky ou deixar de distribuir os canais da Warner Media (Turner e HBO) na TV paga brasileira. Poderia, em tese, optar pela distribuição direta pela Internet, mas neste caso dependeria da decisão da Anatel no item 4 acima, pois se a Anatel der razão à Net, a AT&T não poderia nem mesmo ter seus canais no modelo OTT.
12) Perdendo na Anatel, a AT&T pode ir à Justiça e/ou pressionar por uma mudança na Lei do SeAC. Aliás, tudo indica que a Anatel, se vetar a operação, não poupará críticas à Lei do SeAC.
13) Mas há uma variável política: AT&T e Warner Media são empresas norte-americanas. Sabe-se que o tema surgiu na pauta da recente viagem do presidente Jair Bolsonaro aos EUA. Donald Trump pode não gostar da CNN (da Warner Media), mas dificilmente gostará de ver uma empresa norte-americana ter seus negócios prejudicados no Brasil. Como se comportará o governo brasileiro?
14) Seja por pressão da Net, da AT&T, das demais empresas de telecom, dos programadores internacionais ou dos grupos de mídia locais, uma vez aberta a discussão sobre a revisão da Lei do SeAC, é razoável supor que as operadoras de telecomunicações tentarão derrubar a Condecine-Teles, e esse é o grande problema, de fato, para o setor audiovisual.
15) As empresas de telecomunicações (que controlam as operações de TV paga tradicional, ressalte-se) irão alegar que não faz mais sentido elas bancarem 90% do FSA, com mais de R$ 1,2 bilhão por ano, sendo que as suas maiores concorrentes, as empresas de Internet, não estão submetidas à mesma obrigação.
16) De outro lado, o setor de telecom não recebe nenhum recurso público para investimentos em redes e serviços de telecomunicações, salvo alguns programas de desoneração estaduais para pequenos provedores. É mais um fator de pressão contra a Condecine.
17) Também há uma questão do foco do fundo audiovisual. O FSA, que em 2018 girou R$ 1,125 bilhão, teve em 2017 26% de seus recursos aplicados em produções de cinema, 22% no programa Cinema Perto de Você, 21% em produções de TV paga e o restante em diversos programas, de arranjos regionais, projetos de distribuição, desenvolvimento de projetos, jogos eletrônicos etc. Fora os 21% em conteúdos para TV paga, o benefício para as teles é no mínimo discutível, e a Condecine, sendo uma CIDE, precisa gerar benefícios concreto ao contribuinte.
18) Lembrando que as empresas de telecomunicações foram à Justiça em 2016 para não recolher a Condecine e conseguiram, por um tempo, suspender o pagamento por liminar. O setor audiovisual foi salvo por uma decisão do ministro do Supremo Ricardo Lewandowski, alegando que o setor de telecom se beneficiava da Condecine pelo tráfego gerado pelos conteúdos audiovisuais. Só por isso, disse o ministro, a Condecine era Constitucional .
19) Só que a Ancine ainda precisa regular a Condecine sobre os serviços de video-on-demand, pois esse mercado se tornou tão relevante quanto o de TV paga, e a agência nunca cobrou o que deveria (outra bomba em potencial que pode vir dos órgãos de controle, como apontado aqui). Esse debate consumiu boa parte de 2017 e todo o ano de 2018, mas foi interrompido na troca de governo.
20) Uma vez criada a Condecine-VoD, se isso vier a acontecer (e é necessário que aconteça, pois há uma vulnerabilidade no mercado na situação atual), é natural que as empresas de telecom retomem os protestos contra o pagamento da Condecine-Teles. Afinal, se na TV por assinatura tradicional o pagamento da Condecine-Título (que se paga pelo registro das obras estrangeiras na TV paga) já contribui para o desenvolvimento do setor e, no mundo não-linear, a Condecine-VoD cumprirá a tarefa, qual o sentido de uma Condecine sobre o tráfego? Certamente haverá um debate tributário ai.
Voltamos ao ponto: o Fundo Setorial do Audiovisual não tem apenas um problema de metodologia de aplicação e fiscalização, como apontou o TCU. Tem um problema de sustentação de longo prazo, que passa pelo humor do setor de telecomunicações e pelas mudanças e desafios do mercado de TV por assinatura está enfrentando.
As rachaduras ficarão evidentes nos próximos quatro anos e certamente o setor audiovisual brasileiro terá que se articular para defender o modelo atual ou conseguir se posicionar num novo modelo, em que a distribuição de conteúdos pela Internet será predominante, os players serão outros e as necessidades do mercado serão diferentes.
E estamos aqui olhando a questão apenas sob a ótica econômica, que é a que tende a prevalecer no contexto atual, e não sob a perspectiva sócio-cultural, onde o modelo audiovisual brasileiro também receberia críticas e elogios. De qualquer forma, o ambiente é definitivamente bem mais complexo do que aquele de 2007, quando a Lei do SeAC começou a ser discutida e havia uma razoável convergência de interesses entre teles, empresas de mídia e setor audiovisual. Isso não existe mais.