Presença de cotas no VoD causa divergência entre representantes do governo e mercado
Mariana Toledo
Tela Viva
Não é de hoje que o audiovisual se vê impactado por uma mudança de paradigma. A multiplicidade de telas e a incorporação de novos agentes econômicos ao campo colocam em discussão antigos princípios regulatórios, passando pela cota de tela e a propriedade cruzada, e trazem a urgência de se regular novos mercados, como o VoD. Os marcos legais passados e futuros foram o tema central do debate que abriu o III Fórum Mostra, braço voltado ao mercado da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, nesta quarta-feira, dia 23 de outubro.
O clima geral do painel foi de divergência – enquanto representantes do mercado defendem a presença das cotas tanto na TV paga quanto nos serviços não-lineares, representantes do governo defendem uma “auto-regulação”. “Na minha opinião, a revisão da Lei do SeAC e a regulamentação do VoD são temas que devem ser tratados de forma integrada, mas tendo em vista que toda regulação que barre o desenvolvimento deva ser eliminada. Hoje, sou contra cotas, acho que elas não cabem em serviços não-lineares, como o SVoD, que é o futuro do setor. Elas provavelmente representariam um entrave para o mercado”, opinou o Secretário do Audiovisual Ricardo Rihan. “Minha visão é a seguinte: a Condencine Título e a Condecine Teles são entraves ao desenvolvimento do mercado audiovisual brasileiro. Defendo o fim de ambas, obviamente preservando o nível de arrecadação atual. Já testei essa premissa com agentes de mercado e ela tem sido bem recebida”, garantiu. “Proponho que a Condecine seja cobrada por faturamento e/ou remessa. Com as regras que temos, a Ancine se colocou em uma armadilha regulatória da qual ela não consegue sair. Mudanças precisam ser feitas para atacar esses problemas, e isso passa por um processo de desregulação. Defendo uma auto-regulamentação a partir de um acordo”, conclui o Secretário.
Para o advogado Marcos Bitelli, o maior problema atual é tentar regular mercados novos com base em modelos passados, “olhando pelo retrovisor”, como ele definiu. “Para mim, a regulação do audiovisual tem que passar pela premissa do fomento. O audiovisual brasileiro tem que ser fomentado de todas as formas, estadual, federal etc. O Brasil ficou focado em poucas opções de fomento ao mesmo tempo em que criou-se uma dependência quase que vital desses investimentos. Replicar o modelo do SeAC para regular o VoD é um perigo, porque traz para Ancine uma série de obrigações que a tira do foco, que deveria ser justamente fomentar a produção brasileira. A Lei do SeAC atolou a Ancine com tantas obrigações relacionadas à fiscalização que não podemos repetir o erro com o VoD. Seria o colapso administrativo da Agência”, pontuou. Bitelli ainda ressaltou que qualquer tipo de obrigação decorre de um cenário de escassez e que, por isso, hoje cotas não fazem mais sentido. Apesar de concordar que é necessário avaliar o comportamento do mercado de VoD, o advogado se posicionou com receio em relação a possíveis cotas nesse mercado. “Estamos avaliando o VoD com base no modelo Netflix, e não é bem assim. Diversas outras plataformas estão surgindo e ainda vão surgir, especialmente de nicho, e para elas cotas de produção nacional não se encaixam”, explicou.
Por outro lado, Mauro Garcia, presidente-executivo da Bravi, defende uma atualização da Lei do SeAC e também a regulação do VoD, mas reforça que a legislação brasileira tem uma tendência a fazer leis veiculadas à tecnologia, e o caminho não deveria ser esse: “Mais uma vez estamos discutindo apenas uma modalidade, que é o VoD. Mas o certo seria discutir o centro de toda essa questão regulatória, que é o audiovisual brasileiro. Tecnologias são só formas de entrega. Claro que existem especificidades, mas o foco é o conteúdo. Precisamos fugir dessa armadilha de tentar regular tecnologia”. Garcia desenvolve: “Para mim, o ponto central é como garantir a presença do conteúdo nacional independente em qualquer que seja a tela. O que deve ser discutido é como fazer isso. Por meio de cotas? Investimento? Acredito nas duas coisas. Isso passa por garantir emprego, renda, conteúdo de língua portuguesa, inserção da produção nacional no mercado global, fortalecimento da atividade econômica brasileira… É dar às produtoras essa garantia no ativo econômico, é ele que rende frutos e garante a sustentabilidade das empresas e do setor”.
O pesquisador e consultor João Brant segue a mesma linha. “Temos todos um consenso no objetivo final, que é garantir espaço e potência econômica para a produção independente brasileira. Mas talvez o consenso acabe aí”, brincou. “A ampliação de produção, circulação e veiculação do audiovisual brasileiro se deu a partir de quatro pés que, hoje, estão bambos: um fundo setorial robusto, de fontes próprias a partir da arrecadação de Condecine; as cotas estabelecidas pela Lei 12.485/2011; uma Agência com estrutura e autonomia para trabalhar suas decisões; e liberdade artística. Esses quatro pilares estão ameaçados no momento, e o perigo é deixarmos de enxergá-los como um todo”, alertou. Para Brant, a cotas empoderam o produtor independente, permitem que as obras tenham vida longa e possibilitam ainda que ele se beneficie desses frutos a longo prazo. “Sem elas, os produtores não têm condição de negociação. Isso sem falar na dimensão cultural, que deve vir para o centro dessa discussão. Cota de produção nacional está diretamente ligada a manter a identidade do nosso país. O que podemos debater é qual a melhor maneira de implementarmos essas cotas, com mecanismos e soluções que resolvem as questões críticas, e não a existência das mesmas”, declarou.
Garcia rebate Bitelli no que diz respeito à afirmação do advogado de que a regulação do VoD esteja sendo feita “olhando pelo retrovisor”. Para o presidente da Bravi, dá para olhar por esse metafórico retrovisor para se inspirar nos acertos do passado: “Não precisamos nem de análise de impacto regulatório da Ancine. Todos sabem os resultados positivos da Lei da TV paga. Ninguém tem medo de cota – estamos falando de um número baixo, bastante tímido. As cotas garantem o mínimo e estão diretamente ligadas ao fomento. Não adianta fomentar se não vai ter como exibir. Assim como a Condecine, que é uma contribuição que os próprios canais colhem os frutos depois. Ninguém a teme. Não é como se fosse uma taxação punitiva”. Por fim, ele brada: “Regulação é necessária, sim. Auto-regulação pressupõe que empresas tenham isonomia de poder de negociação”. Bitelli, por sua vez, reafirma sua teoria: “Não estou falando de avaliar se vai ou não ter cota, e sim ter essa inteligência de não se basear em modelos existentes, tipo Netflix, para regular o mercado de VoD como um todo. O erro do projeto atual é colocar as mesmas obrigações para diferentes tipos e tamanhos de plataformas, além de prever um atolamento de obrigações de fiscalização por parte da Ancine”.
Rihan também reforça seu posicionamento: “Eu fui a favor das cotas na TV paga e reconheço que elas tiveram efeito positivo. Só acho que, no serviço não-linear, representariam um entrave no mercado. A questão é como garantir a participação da propriedade intelectual brasileira nesse mercado global. Daí minha proposta de um pacto no qual plataformas se tornam parceiras da propriedade intelectual brasileira, promovendo no mundo inteiro obras produzidas aqui. Como contrapartida, não haveria nenhum tipo de cota”. O Secretário prossegue: “O papel da Secretaria é ouvir o mercado e buscar um consenso na medida do que for melhor para todos. Acredito que todas as tecnologias que prestam um mesmo serviço precisam estar sob a mesma regulação. Uma simetria regulatória”.
Brant, então, define sua posição final: “Precisamos estabelecer regras que sejam ‘à prova de futuro’, marcando esse princípio geral, que é a garantia do espaço para a produção brasileira independente. Eu não gostaria de ter que trabalhar o impacto das cotas como uma questão que ainda precisa ser analisada. Já maturamos esse debate durante muito tempo. O consenso é difícil, claro. São interesses diferentes. Mas podemos estabelecer um princípio geral e que seja flexível”. O pesquisador conclui: “Cotas, proeminência e obrigação de investimentos no Fundo, para mim, representam o equilíbrio que devemos buscar”.