Racionamento de salas e cota de tela

Marcos Alberto Sant Anna Bitelli

Revista Exibidor São Paulo: Tonks , pág. 38

A cota de tela de filmes brasileiros nas salas de cinema foi criada em 2001 com prazo de vigência até 2021. A política é uma ferramenta que o mercado de exibição reconhece como uma intervenção do Estado na atividade que tem como objetivo garantir a presença de filmes nacionais. Ela se traduz em reserva de mercado e, como tal, deve ser introduzida e paulatinamente retirada até que o mercado encontre seu perfil natural, que pode não ser a predominância do produto brasileiro.

A cota de tela de filmes brasileiros nas salas de cinema foi criada em 2001 com prazo de vigência até 2021. A política é uma ferramenta que o mercado de exibição reconhece como uma intervenção do Estado na atividade que tem como objetivo garantir a presença de filmes nacionais. Ela se traduz em reserva de mercado e, como tal, deve ser introduzida e paulatinamente retirada até que o mercado encontre seu perfil natural, que pode não ser a predominância do produto brasileiro. Num mundo globalizado, as reservas de mercado se adaptam às características mais universais da circulação de bens e serviços. De outro lado, na sociedade da informação, no ambiente da internet sem fronteiras, as reservas de mercado são mais facilmente contornáveis. Como a água que acha seu caminho, o interesse do consumidor sempre prevalece ao arrepio da pretensão de se tutelar os mercados. A exibição foi “convidada” a autolimitar o número de lançamentos por complexo. Em rodadas de discussões fomentadas pela ANCINE, a agência desenhou uma proposta de limitação ao número de lançamentos nacionais e estrangeiros e novamente os exibidores foram convidados a aderir. Superada essa fase – na qual sob o viés jurídico se pode questionar a possibilidade do Estado induzir um acordo setorial limitante das regras de livre concorrência – a indústria do cinema foi surpreendida com a edição do Decreto 8.386/2014 que criou a limitação compulsória ao número de salas para o lançamento de filmes, criando-se um “racionamento legal” de salas. Independente das razões e intenções dessa limitação, a resultante foi uma inédita intervenção não prevista em Lei na liberdade de exercício da atividade econômica. Não bastante, o Decreto 8.386/2014 criou uma “sanção” por descumprimento do “racionamento de sala”. Essa penalidade se consiste num “adicional de cota de tela” para o ano corrente de 2015, proporcional ao número de dias que um complexo “violou” o “racionamento” decretado. O Decreto foi regulamentado pela ANCINE em 24 horas, no último dia do ano e valeu para o dia seguinte (1º de janeiro). Além disso, surgiu em abril o projeto no Congresso Nacional visando converter em Lei o “racionamento de salas” em situação mais grave ainda. Desse modo, o setor de exibição optou, pela seriedade do precedente, em judicializar o “racionamento” com base num argumento linear e cartesiano: não pode um Decreto e uma Instrução Normativa inovar na ordem jurídica criando obrigações que não estão previstas na Lei. A defesa do Governo Federal e da ANCINE é de que se trata de atuação legítima porque as normas cuidam de cota de tela. Ocorre que o art.55 da MP 2228-1 determina que anualmente o Presidente da República fixará por decreto “o número de dias da obrigatoriedade” de exibição de filmes brasileiros no ano seguinte. Portanto, não há espaço para se criar o “racionamento” de salas para lançamento por meio desse Decreto cuja única delegação legal é fixar o número de dias da reserva de mercado. É esse, portanto, o único tema do debate. A cota de tela não é o objetivo dessa disputa em particular e esse debate ocorre e ocorrerá em outros campos e fóruns. Os critérios da fixação devem ser objetivos, fruto de estudos consistentes que demonstrem a viabilidade de seu cumprimento. Deveria, ainda, ser decrescente de modo que chegasse a zero em 2022. A possibilidade de fixação anual do tamanho da cota de tela não pode ser um instrumento de coação para a submissão da exibição a exigências regulatórias não suportadas legalmente ou na razoabilidade. A delegação desse “poder-dever” de definição não se constitui em um cheque em branco para exercício de atos arbitrários ou de inovações.