O que conta no debate da cota de tela e cota de tela suplementar nos cinemas?

Marcos Alberto Sant'Anna Bitelli

Tela Viva

As salas de cinema brasileiras estão sujeitas a uma reserva de dias anuais para a exibição de filmes brasileiros, denominada de “cota de tela”. O número de dias mínimo deve ser fixado por Decreto presidencial anualmente. A ANCINE aferirá, semestralmente, o cumprimento dessa obrigação. Em dezembro de 2015, o Decreto da Presidente Dilma Rousseff, introduziu, sem previsão legal, uma obrigação nova de limitação do total de número de salas que poderiam exibir um mesmo filme, por complexo cinematográfico, vigente para o ano de 2016, que foi chamada leigamente de “cota suplementar”.

Essa inovação sucedeu a outra também não prevista em lei: além de garantir um número mínimo de dias por ano para a “cota de tela”, os exibidores teriam ainda que cumprir essa obrigação com um número mínimo de títulos de filmes nacionais. O argumento para a multiplicidade mínima de títulos de obras brasileiras era que a cota de tela passou ser atingida com a exibição de filmes brasileiros de sucesso comercial.

O aumento de intervenção na programação de filmes pelas distribuidoras e exibidores teve como primeiro alvo o sucesso dos grandes filmes comerciais brasileiros. Desde 2010 títulos como “De pernas pro ar 2”; “Até que a sorte nos Separe 2”; “Até que a Sorte nos Separe 3”; “Os Dez Mandamentos”; “Minha mãe e uma peça 2”; “Os Parças”; “Polícia Federal”, “DPA” foram grande sucesso de público.

Em 2017, 20 filmes brasileiros somaram 15.644.555 de ingressos. O total de público de filmes brasileiros em 2017 foi de 17.358.513, o que significa que os demais 140 filmes brasileiros dividiram o saldo do público de menos de dois milhões de ingressos todos juntos.

“Minha mãe é uma peça 2” foi lançado em 22 de dezembro de 2016 com 1.055 salas simultaneamente e foi o filme brasileiro mais visto em 2017 com um público de mais de 5 milhões. “Minha Vida em Marte” conquistou 5,2 milhões de ingressos desde sua estreia nos últimos dias de 2018.

Olhando o perfil dos filmes lançados, a análise desses dados todos disponibilizados pela ANCINE mostra que a aposta de negócio que obteve maior sucesso em 2017 foi lançar filmes que compõem a sequência narrativa de outros longas-metragens. Aliás, uma tendência de público dos últimos anos não só no Brasil.

Deste modo, contra a tendência do público de preferir filmes brasileiros chamados comerciais, por Decreto, foi se aumentando o número de títulos mínimos para cumprimento da cota. Em seguida, contra a preferência do público de cinema por filmes estrangeiros de grande apelo comercial, criou-se por Decreto a tal da “cota suplementar”.

A questão precisa ser analisada sem muitas paixões, sob dois prismas: o legal e o mercadológico.

Sob o aspecto legal as ações judiciais vencidas pelos exibidores cinematográficos jamais questionaram a importância indiscutível da obra cinematográfica brasileira, mas apenas visaram colocar freio numa tendência crescente de intervenção não permitida por Lei ou pela Constituição Federal na atividade comercial, valendo sempre lembrar que produção, distribuição e exibição não são concessões de serviços públicos. Portanto a decisão de obter o reconhecimento de um lado e de outro, a decisão do Judiciário da ilegalidade de se emitir Decretos (ou instruções normativas) interferindo em atividades privadas foi totalmente neutra em relação à relevância, qualidade e necessidade de fomento da produção audiovisual brasileira. Trata-se de uma defesa do Estado Democrático de Direito, mandamento constitucional fundante que precisa ser sempre vigiado por todos, pois a ilegalidade que favorece uns pode desfavorecer outros, na mesma medida, num outro momento. Aceitar uma ilegalidade que beneficie alguém individualmente ou determinados grupos é o primeiro passo para aceitar exceções e renúncia de direitos, caminho perigoso para uma democracia. Trata-se de uma posição institucional que todo cidadão deve adotar, mesmo quando direta ou indiretamente num determinado momento, pareça gerar resultados benéficos para alguns ou mesmo que tenha uma aparência “justiceira”. A justiça de fato não pode prescindir da legalidade de direito.

Sob o prisma mercadológico, a mesma reação preconceituosa contra os grandes filmes comerciais brasileiros que gerou os Decretos de “diversidade de títulos”, aparece na defesa da “cota suplementar de tela” (que aliás é aparentemente neutra quanto à origem dos filmes, atingindo em tese filmes nacionais e estrangeiros).

Todavia, não se pode esquecer que o “remédio” da “cota de tela” é anterior até mesmo à criação da ANCINE, desde o tempo do Instituto Nacional do Cinema e depois pelo CONCINE. Naquela época o cinema ocupava um espaço em relação ao público totalmente diferente do que ocorre em 2019. O cinema passou a conviver com o sucesso da televisão aberta, depois do vídeo doméstico (do VHS ao Blue-Ray), com a televisão por assinatura e agora ele junto com todas essas mídias que com ele competiam enfrentam o desafio das plataformas digitais que trafegam “over-the-top” (os OTT). Tudo está mudando muito rapidamente, o modo como as pessoas consomem o audiovisual mudou. Os espectadores se apaixonaram pelo formato das séries e, não é por acaso, que os maiores sucessos do cinema brasileiro e estrangeiro são aqueles resultantes de sequências ou franquias. O sucesso impressionante do “Vingadores: Ultimato” é a prova disso. Ele replica o que acontecia quando as novelas da Globo paralisavam o país no dia do último capítulo, onde ninguém ia ao cinema e ficava em casa para não perder o desfecho da saga. Dessa vez deixaram as novelas e as séries e foram ao cinema. E isso deveria ser entendido como um bom sinal, um sinal de esperança para o futuro da sala de cinema.

As mudanças estão acontecendo de todos os lados e as salas de cinema parecem que estão encontrando outras vocações frente às inúmeras possibilidades de acesso aos filmes proporcionado pelas plataformas digitais. É de se notar que muitas obras originais de plataformas digitais sequer são dirigidas mais às salas de cinema. Atualmente há na prática apenas dois tipos de direitos audiovisuais: direitos para salas de cinema e para acesso direto pelo espectador, que agora se chama usuário (anywhere e everywhere). A lógica tradicional do mercado de entretenimento das escalas temporais por janelas vem encurtando a cada dia, e é aí que parece estar o “endgame”.

A descoberta dessa realidade é dolorosa para todos nós envolvidos de uma forma ou de outra nos negócios do entretenimento audiovisual. Os modelos estão ruindo e os elos tradicionais da cadeia precisam se reinventar. O velho caminho de usar o regulador, a Lei e o Direito como ferramentas de proteção não funcionará mais.

O sucesso impressionante e mundial do último capítulo da saga da Marvel deveria ser de certo modo objeto de celebração para aqueles que gostam da experiência da sala do cinema, porque mostra que o cinema sobreviverá, com o seu papel de espaço coletivo de uma experiência que nenhuma plataforma digital poderá dar. As redes de cinema comercial não têm como competir mais contra a multiplicidade e elasticidade das plataformas digitais de fornecer tantos títulos (diversidade) e tantos lançamentos (novidade) ao mesmo tempo e esse não deverá ser mais o seu papel. O cinema vai sempre se reinventando e sobrevivendo a todas as novas mídias que apareceram cabendo àqueles que produzem e àqueles que distribuem adequarem seus produtos não mais apenas aos seus públicos, mas também ao formato demandado pelos meios que ofertam tais conteúdos e ao interesse maior do público. As bandas musicais diante das plataformas digitais descobriram da mesma forma que precisavam voltar a lotar os estádios e fazer shows. As operadoras de televisão por assinatura estão enfrentando dilemas semelhantes. É preciso permitir que a sala de cinema exerça sua vocação no mundo digital e não haverá Lei que resolva essa equação. O interesse do consumidor é como a água, sempre encontra o seu caminho, por mais barreiras que se coloquem no percurso.