Em Debate Especial: PL 29
Marcos Alberto Sant Anna Bitelli
Teleco - Informação em Telecomunicações São Paulo: Portal Teleco
PL 29: Um alerta para o que virá depois
O substitutivo ao Projeto de Lei nº 29 da Câmara dos Deputados, traz apenso os projetos de Lei nºs 70, 332 e 1.908, todos de 2007 e dispõe a organização e exploração das atividades de comunicação social eletrônica.
Na prática, o nascimento destes projetos na Câmara e do Projeto de Lei 280 do Senado, têm todos como gênese, os falecidos projetos de emenda constitucional, conhecido como PEC 55, do Senador Maguito Vilela e o de Lei 4209 do Deputado Luiz Piauhylino, ambos de 2004. Com o arquivamento destas duas iniciativas no final de 2006, por questões regimentais, houve a “promessa” de que estas questões tornariam no futuro. E voltaram! Aos motivos que inspiraram as iniciativas de 2004, somou-se o interesse de um rearranjo das assimetrias regulatórias no campo dos serviços de televisão por assinatura – cabo, DTH e MMDS e uma inexorável vitória da tecnologia sobre a regulação, que é a crescente capacidade dos serviços de telecomunicação de prestar serviços multimídia.
Colocados estes interesses em cotejo, os projetos ora pendiam para uma proteção ao setor dominante da radiodifusão ora para os players de telecomunicação. Após um concerto entre comissões técnicas da Câmara dos Deputados, o processo legislativo correu quase que ao mesmo tempo e em paralelo nas comissões Comissão de Desenvolvimento Econômico, Indústria e Comércio e na de Ciência e Tecnologia.
O processo de negociação política em torno das idéias, novamente, tem como ponto de partida um texto proposto em formato de projeto de lei. A partir deste texto base os interesses contrariados, procuram ao interferir no processo, com alteração, modificação, supressão ou adição de textos. Esta metodologia de produção de minutas e novas minutas que são postas a conhecer, geralmente causa uma falta de acuidade técnica nos textos legislativos trazidos à vigência, no mais das vezes causa de tantos litígios. Uma lei mal escrita é uma porta aberta para disputas, questionamentos e contornos.
A primeira preocupação que aflige a quem terá que operar com eventuais mudanças da ordem jurídica decorrentes do PL 29 é a falta de uma simplicidade de linguagem e facilidade de entendimento do seu conteúdo, de modo geral. Nestes meses em que vários executivos, consultores e especialistas se debruçam sobre as versões, o que se nota é uma grande ansiedade decorrente da complexidade formal e material, que conduz aos participantes do processo uma grande insegurança e uma oposição automática, levando ao famoso conceito de “não li e não gostei”.
A solução para este tema seria se ajustarem as idéias e a partir dela, uma comissão de especialistas na operação jurídica, produzir um texto mais operável e amigável ao leitor, dando segurança jurídica e previsibilidade ao futuro dos setores atingidos, o que parece estar sendo inviabilizado pela pressa com que o assunto é conduzido. Muitos dirão que a pressa é justificada pela premência de algumas assimetrias regulatórias das telecomunicações e, ao mesmo tempo, que outras assimetrias do mesmo setor, em paralelo estejam em fase de reparos. Pode ser verdade. Contudo, a prevalecer a intenção de regulação por camadas, ao que parece no setor de telecomunicações é a distribuição de serviços multimídia que tais assimetrias estão maduras para intervenções legislativas.
Por outro lado, a segunda preocupação que se apresenta é que novamente por um interesse de solução de alguns temas de telecomunicações – novamente excludente dos assuntos relativos à radiodifusão se aceite sem muita cerimônia levar-se a reboque temas relativos às restrições das atividades de produção e programação de conteúdos audiovisuais.
É fato que superados uma ou outra questão, como, por exemplo, uma nova Condecine agora expressamente incluindo-se os conteúdos do serviço de SMP (Celular), os sujeitos a concessões, outorgas e permissões (radiodifusores e telcos) não devem ter maiores colisões na primeira camada.
A carona legislativa diz respeito à reincidência do interesse da regulação sobre os conteúdos em si, projeto que surgiu com a iniciativa de transformação da Ancine em Ancinav. A Ancine surgiu através de Medida Provisória – que ficou definitiva sem nunca ter sido votada – como uma agência que seria supostamente de fomento e regulamentadora. A Ancine foi “vendida” não como um instrumento de intervenção autônomo, como é a Anatel. Isto porque o artigo 7º, inciso V da MP 2228-1/2001, diz que será competência da Ancine “regular, na forma da lei, as atividades de fomento e proteção à indústria cinematográfica nacional, resguardando a livre manifestação do pensamento, da criação, da expressão e da informação”. Assim, diferentemente de uma Agência constitucionalmente prevista ou aceita, a Ancine tem atividade na verdade de “regulamentação” e não de “regulação”. A diferença é que não cabe à Ancine interferir em nenhum segmento de mercado do audiovisual por dois motivos: i) que a programação e produção de conteúdo são atividades de comunicação sujeitas a reservas, em particular o artigo 220 da Constituição Federal que diz “a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma ou processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta constituição”; ii) os demais segmentos que são objeto de concessão, permissão ou autorização, já são objeto de regulação pela Anatel, conforme determina o artigo 21, inciso IX da Constituição Federal – no caso das telecomunicações. Além disto, todos estes serviços e atividades econômicas se encontram sobre uma regulação fundamental e aplicável indistintamente a todos, conforme autoriza o artigo 174 da Constituição Federal e a Lei 8884/1994 que cuida das infrações à ordem econômica e cria a Agência conhecida como CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica, onde assimetrias podem e devem ser discutidas.
Deste modo, preocupa que o Congresso Nacional possa produzir uma legislação que estabeleça uma política regulatória sobre conteúdos (produção e programação) e ao mesmo tempo, confira à Ancine poderes especificamente regulatórios, o que a Constituição não autoriza. A nova proposta de lei diz que: “As atividades de produção, programação e empacotamento são livres para empresas constituídas sob as leis brasileiras e com sede e administração no País, observadas as restrições previstas nesta Lei” e, completa: “As atividades de que trata o caput deste artigo serão objeto de regulação, fiscalização e fomento pela Ancine”. Há, portanto, autorização neste projeto, ainda que não haja na Constituição, que a Ancine se transforme em agência reguladora. A continuação da leitura do substitutivo dado a conhecer confirma este indício ao dizer que: “O exercício das atividades de programação e empacotamento está condicionado a registro perante a Ancine”, e completando, acrescenta: “A Ancine deverá se pronunciar sobre a solicitação do registro no prazo de até 30 (trinta) dias e, em não havendo manifestação contrária da Ancine nesse período, o registro será considerado válido”. Isto significa que a Agência pode se opor ao funcionamento de uma empresa de criação, manifestação de expressão e programação? Daí pode resultar que o “registro” na Agência se transforma num ato administrativo de “permissão” ou “autorização” para o exercício de atividades que tem como cláusula pétrea a plena liberdade. Perceba-se que a Ancine pode aplicar uma penalidade de “suspensão temporária do registro, que não será superior a 30 (trinta) dias, será imposta em caso de infração grave cujas circunstâncias não justifiquem o cancelamento do registro”. Isto é inimaginável num país verdadeiramente democrático. Suspender o direito de uma pessoa criar, produzir e informar?
Acresce dizer que exercer, relativamente às atividades de produção, programação e empacotamento de conteúdos audiovisuais as competências legais em matéria de controle, prevenção e repressão das infrações da ordem econômica, ressalvadas as pertencentes ao Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE, pertencerão à Ancine, que portando passa também a concorrer para a função regulatória do Estado prevista no artigo 174 da Constituição Federal. A Anatel somente atuaria de fato quando a análise do assunto envolver a atividade de distribuição de conteúdos de que trata a Lei que dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado, deverá ser ouvido, previamente, a Anatel.
Agrava ainda a preocupação da transformação da Ancine numa superagência, porque o PL 29, inadvertidamente, diante dos grandes questionamentos que sofre na questão de conteúdo, está tendo como saída estratégica delegar à ela a solução de pontos polêmicos ainda não enfrentados ou pendentes de conserto ou consenso. Estes poderes são no mínimo indelegáveis, tendo em vista que somente a lei, no que for constitucional poderia estabelecer regras para a Ancine regulamentar. A delegação regulatória específica significa um “cheque” em branco, uma invasão da capacidade legislativa, o que é intransferível ou indisponível, salvo autorização Constitucional.
Anote-se que compete à Ancine a fiscalização do recolhimento da Condecine, a CIDE do setor do audiovisual, que agora passaria a incidir também sobre atividades de telecomunicação, com a alteração que é proposta aos artigos 32 e 33 da MP 2228-1/2001 a saber: Art. 32. A Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional – CONDECINE terá por fato gerador: (…) II – a prestação de serviços que possam, efetiva ou potencialmente, envolver a atividade de distribuição de conteúdos de que trata a Lei que dispõe sobre a comunicação audiovisual de acesso condicionado, dispostos no Anexo I desta Medida Provisória e paga anualmente. O sujeito passivo desta obrigação, solidariamente são agora as concessionárias, permissionárias ou autorizatárias de serviços de telecomunicações, relativamente ao disposto na redação proposta ao novos inciso II do art. 32 da MP 2228-1/2001.
De modo análogo a Ancine e a Anatel exerceriam as atividades de normatização e fiscalização no âmbito de suas competências e poderão definir o recolhimento conjunto da parcela da CONDECINE devida referente ao inciso III do art. 33 e das taxas de fiscalização de que trata a Lei nº 5.070, de 7 de julho de 1966, que cria o Fundo de Fiscalização das Telecomunicações. Neste caso, normatização significaria regulamentação.
Portanto, a dificuldade principal do PL 29 não está na camada de distribuição, mas na camada da criação, produção e programação de obras audiovisuais e programações, onde o país está permitindo a passagem de uma enorme gama de exceções a direitos e garantias fundamentais dos brasileiros.
É preciso que se indague se o povo brasileiro está disposto a mitigar suas conquistas democráticas em troca da redução de assimetrias pontuais regulatórias de tecnologias de televisão por assinatura (DTH, MMDS e cabo), que poderiam ser tratadas em lei específica do setor, sem grandes dificuldades, numa revisão imediata da lei do cabo.
Novamente o velho jargão do “fomento” da produção de conteúdo nacional, bandeira incontestável, se presta a ofuscar uma questão essencial que é a reiterada vontade do Governo Federal em investir esforços, recursos e tecnologia para controlar a manifestação da criação e expressão brasileiras. Mais uma vez o chavão nacional versus estrangeiro, o domínio do império americano permeia a ideologia subliminar. Tudo isso está aí, colocado no confuso e complexo texto, suas sucessivas versões e centenas de emendas. O que ocorre é que as pessoas somente têm condições de analisar o projeto pelas apresentações gráficas e resumidas que trazem os conceitos de uma forma genérica sem aprofundar os questionamentos da sua linguagem textual.
Longe de se apresentar neste texto uma oposição às premissas do PL 29 ou às alterações no ambiente regulatório da televisão por assinatura, que fique aqui apenas o registro de que uma acurada análise dos poderes concedidos à Ancine, da superposição de competências com Anatel e o CADE e as novas tributações (diretas ou indiretas) sobre o setor de telecomunicações deve ser considerada.
Publicado em www.teleco.com.br