Digitalização e Direitos Autorais

Marcos Alberto Sant Anna Bitelli

Anuário Pay TV 2008 São Paulo: Glasberg, pág. 26

Matando a Galinha e Pisando nos Ovos!

A convergência tecnológica tem se constituído num campo minado por divergências. As disputas são de toda ordem, em particular diante do temor de que novas plataformas ou novas aplicações venham a se constituir como nocivas ou “assassinas” aos modelos de negócios estabelecidos.

O que se concluiu é que modelos de negócio calcados em tecnologia são efêmeros e, por conseqüência, a “cereja do bolo”, a “alma”, o “rei” é o conteúdo. Palavra de significado quase “vazio de conteúdo” veio a substituir o termo “obra”, utilizado academicamente, nas leis e nos negócios dos que criam, produzem e distribuem “obras artísticas, literárias e científicas”, as tais criações protegidas pelo direito de autor e por copyright.

O motivo da popularização de “conteúdo” em substituição a “obra” certamente advém da redução da relevância artística, cultural ou científica das obras criadas, da “comoditização” dos elementos intelectuais que trafegam no mundo digital, da simplicidade e acessibilidade do processo de criação e da explosão da produção pela redução do custo. O aumento da capacidade do ser humano em gerar cópias é sempre um inimigo histórico da proteção dos direitos autorais.

A defesa contra este inimigo são as leis e as ferramentas tecnológicas de proteção – não há outras alternativas! Não se pode esquecer que a opção pelo enfraquecimento das leis de direitos autorais ou o esmorecimento da sua observância, a médio e longo prazos significa um desincentivo à criação e, portanto, a destruição de registros culturais de um povo ou uma nação.

Com o lançamento oficial da TV Digital no Brasil, novamente o embate se apresenta. Há estudos e especificações técnicas desenvolvidos para o Comitê de Desenvolvimento do Sistema de TV Digital que estabeleceriam um conjunto de medidas tecnológicas, às quais os radiodifusores poderiam preservar (ou ao menos tentar) a proteção da redistribuição das suas transmissões.

Enfraquecimento

Todavia, de forma contraditória, o Governo brasileiro, como e quando pode, dá sinais de querer enfraquecer a proteção aos direitos autorais no país. Primeiramente, em 2003, pela Lei 10.695, esforçou-se para conseguir que a “cópia para uso privado do copista” deixasse de ser crime, ainda que na Lei 9.610/1998 (Lei de Direito de Autor) esta cópia somente seja autorizada para pequenos trechos. Em seguida, apoiou o movimento do creative commons, uma iniciativa norte-americana de licenças on line gratuitas, onde os autores cedem gratuitamente seus direitos para determinados usos por terceiros. Este modelo comunitário de direitos gratuitos não se presta a sustentar a produção de obras e conteúdos economicamente relevantes ou estruturar modelos de negócios de empresas. Pior, muitas vezes algumas autoridades fazem comparações com as vantagens do “software livre” e chamam as obras autorais de “sofwares” das mídias, o que só vem a desmerecê-las. Agrava-se o quadro com a tendência do Governo brasileiro de não acatar a nenhuma das recomendações técnicas para a Segurança e Gestão de Direitos Autorais no SBDTV, calcado em interpretações equivocadas de premissas Constitucionais de acesso às fontes da cultura nacional.

O que se discute aqui é o não direito à reprodução e distribuição de obras (conteúdos) difundidas pelos meios de telecomunicação e da radiodifusão. O que está em jogo é o direito dos titulares das obras que trafegam pelo sinal, e não o sinal em si, o que é totalmente diferente.

A TV por assinatura, por exemplo, já existe há anos e até o momento não se fez produzir uma legislação específica protetiva das transmissões por cabo, MMDS ou satélite dos sinais das operadoras. É crime tipificado pelo velho Código Brasileiro de Telecomunicações (art. 56, §1º da Lei 4.117/1962) receber, divulgar ou utilizar telecomunicação interceptada. Entretanto, não se tem convicção de que isto proteja os sinais das empresas de televisão por assinatura, ainda que o conteúdo das programadoras e da programação seja protegido por direitos autorais e copyright.

Bonde da História

O mesmo ocorrerá com WebTV, com IPTV ou TV Digital Terrestre. Parece-nos que o Governo brasileiro “perdeu novamente o bonde da História”. Confundiu universalização e inclusão social, que são temas relacionados à infra-estrutura e às tecnologias, com justificativa ao desrespeito aos direitos autorais dos titulares, que não são necessariamente quem transmite, distribui ou exibe.

Não é porque a TV aberta é gratuita e universal que seu conteúdo é coisa pública ou do público.

Certamente, a ausência de medidas que permitam ao titular do conteúdo ao menos saber para onde está sendo distribuída sua obra, será um fator de desincentivo ao licenciamento de conteúdos economicamente relevantes na TV aberta digital, consequentemente, se tornando em fator de exclusão e não de inclusão social, cultural ou de entretenimento.

A lei autoral brasileira já tem elementos suficientes a proteger os titulares de direitos de autor e os radiodifusores (direitos conexos) quanto à reprodução de suas obras e emissões, o que vale no ambiente digital. A falha que poderia ser corrigida agora, seria fazer inserir no SBTVD medidas mínimas de ordem legal e tecnológicas para a possibilidade efetiva de exercício dos direitos pelos titulares. Através de um simples regulamento, até mesmo por Decreto, algumas das proteções como marcas d’água, flags e limitadores de reprodução além da cópia privada ou de distribuição pela internet, ajudariam a não se matar a galinha dos ovos de ouro, a cereja do bolo, e ainda a não se pisotear os ovos que restarem.

Não se trata de uma opção estratégica de Governo, mas um direito universal da pessoal humana que precisa ser respeitado.