Mais estranho que a ficção

Migalhas - São Paulo

A recente resolução 16, da Câmara de Comércio Exterior, que instaurou o procedimento de consulta pública sobre as medidas de suspensão de concessões ou obrigações do país relativas aos direitos de propriedade intelectual e outros, em relação aos Estados Unidos, resultou em uma divertida crônica publicada no último final de semana no Valor Econômico. No texto, dois cinéfilos conversam, aflitos, sobre a hipótese de os filmes feitos nos EUA sofrerem retaliação do Brasil.

Em seguida, o advogado Marcos Bitelli, de Bitelli Advogados, opina sobre o caso. Para o causídico, a história da retaliação de forma cruzada devido às disputas na OMC deixa muitas dúvidas.

Parecer jurídico tenta entender roteiro da retaliação

Para o advogado Marcos Bitelli, especialista em direitos autorais, essa história da retaliação do Brasil aos Estados Unidos, de forma cruzada devido às disputas na OMC, deixa muitas dúvidas. “Se é fato que o Brasil está exercendo direitos de retaliação legítimos” ele diz, “este cruzamento de algodão com cinema é algo novo e complexo. Usar direitos intelectuais para o fogo cruzado pode funcionar para alguns setores e para outros não. Ao quebrar patente de um remédio até dá para se produzir um genérico, mas quebrar os direitos de uma obra audiovisual é bem diferente.”

“O filme de cinema, o programa de televisão, são obras únicas, produzidas e finalizadas. Não tem como fazer um genérico. Ou você tem o filme ou o programa ou não tem. Uma das sanções colocadas pelo Brasil seria a ‘licença compulsória’, sem remuneração e sem autorização do titular do filme para comunicação ao público, ou seja, para passar no cinema, na televisão ou televisão por assinatura. Dizem que isso ia ser bom para o consumidor.”

Mas como isso seria possível na prática? “As obras audiovisuais precisam ser obtidas através de matrizes analógicas ou digitais ou captação dos sinais de satélite. Se o produtor que está lá fora não entregar, não tem cópia ou retransmissão. Ainda que desse certo, como repassar esse benefício ao consumidor? Dar desconto no ingresso, fazendo a meia da meia entrada?”

“Bom, isso pode aumentar o público do filme americano que ficaria mais barato que o nacional, se essa for a idéia”, conclui Bitelli. “Ou reduzir o valor da assinatura de televisão? Reduzir o valor da propaganda comercial nas TVs?”, pergunta. “Há uma outra sanção que diz que o Brasil poderá elevar o preço do registro oficial das obras audiovisuais que seriam feitos para fins de sua validade”, lembra. E lembra: “Ocorre que o sistema legal brasileiro de direitos autorais não exige este tipo de registro. Aliás, nem existe o órgão para registrar. Então se vai aumentar o preço do que? Ainda tem uma ameaça de ‘sanções comerciais’ sobre a remuneração que faz jus o produtor norte- americano. Acontece que tais remunerações são tributadas por imposto de renda, que parece que somente pode ser alterado de um ano para o outro. Fosse possível um outro adicional, precisaria se entender qual seria a natureza jurídica disso, uma contribuição, uma taxa ou o que?”, questiona o advogado.

E alerta: “O Brasil menciona poder exigir que o exercício dos direitos seja condicionado a um registro para a obtenção e manutenção dos direitos, o que contraria a Convenção de Berna do qual o Brasil é signatário e, na prática, não temos um órgão para fazer esse registro para fins autorais. A Ancine tem um outro tipo de registro de títulos estrangeiros, regido pela sua lei de criação e não tem efeitos para fins de reconhecimento de direitos autorais”.

“Enfim, uma grande confusão que tem um significado político importante, mas nenhum resultado prático em favor dos brasileiros”, conclui. “Todas estas dificuldades práticas podem na verdade dirigir o público em geral a pensar que as obras americanas estariam num ‘limbo’ jurídico que favorece a atuação de pirataria. E pirataria não é bom nem para gregos nem para troianos. Enfim, esta briga não vai fazer surgir um ‘Avatar genérico’ ou um ‘software livre’ nas telas dos cinemas, das TVs ou nos DVD’s. E, nos camelôs do Brasil estas sanções já estão rolando faz tempo….”