Cotas dividem Canais e Produtoras

Rafael Cariello

Folha de São Paulo - Ilustrada

Uma janela para outras culturas ou um espelho do país?

Para TVs pagas, instrumento é ineficaz e ameaça qualidade; produtores independentes dizem que instrumento fomentaria mercado.

Projeto de lei que cria tempo mínimo de programação nacional ganhou apoio explícito de Lula, mas só deve ser votado em 2009.

Uma janela para outras culturas ou um espelho do país? Políticos, produtores e profissionais de TV se viram envolvidos em 2008 num debate acerca do papel da televisão brasileira, sobre a medida em que essas duas características devem ser combinadas e se cabe ao Estado regular o conteúdo do que o telespectador verá.

A decisão deve ficar para o ano que vem, mas um projeto de lei que cria cotas para produções nacionais e independentes na TV por assinatura provocou a discussão nos últimos meses, estimulada mais por motivos econômicos do que culturais.

O debate sobre cotas vem embalado por um projeto de lei mais amplo, que libera as operadoras de telefonia para atuar no mercado de TV por assinatura (PL 29), originalmente proposto pelo deputado federal Paulo Bornhausen (DEM-SC), ainda em 2007.

O projeto ganhou acréscimos de outros parlamentares e foi relatado na Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática pelo deputado Jorge Bittar (PT-RJ). Há duas semanas, recebeu apoio explícito do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Durante cerimônia de lançamento do Fundo Setorial do Audiovisual, no Rio, ele prometeu empenho do governo na sua aprovação.

Segundo o relatório de Bittar, entre outras determinações de programação mínima, as programadoras de TV paga deveriam reservar 10% do tempo total veiculado em horário nobre para produções nacionais e independentes de séries, filmes e documentários.

Além dessa, há uma série de diferentes cotas que se somariam no efeito final. O objetivo é garantir não só a veiculação de produtos nacionais, mas também de material que seja produzido por empresas distintas das próprias programadoras e transmissoras (ou seja, feito pelos chamados produtores independentes).

Numa mesma “empacotadora” de TV a cabo -aquela de quem o telespectador compra o serviço, como a Net ou a TVA- há várias programadoras, que determinam o conteúdo de um conjunto de canais. A HBO, por exemplo, é a programadora de uma série de canais que trazem o seu nome ou o nome Cinemax. Se aprovada, as cotas deverão ser cumpridas por cada uma dessas programadoras, e não pelo conjunto de canais ofertados numa assinatura de TV a cabo.

Instrumento ineficaz
A proposta é atacada pela ABTA (Associação Brasileira de TV por Assinatura). Seu presidente, Alexandre Annenberg, diz não se opor a uma maior presença de conteúdo nacional na programação, mas afirma que as cotas não são o melhor instrumento para chegar a esse resultado com qualidade.
“É um instrumento ineficaz”, ele diz, “que praticamente estabelece uma reserva de mercado”. “A primeira conseqüência -e isso é algo que já vimos acontecer no passado, quando tivemos reserva de mercado para produtos de informática- é que o produtor deixa de se preocupar com a qualidade e com o preço do produto.”

Se for imposta uma cota mínima de programação nacional, as programadoras podem ter que responder com uma de duas soluções, ele diz. “Podemos ter que diminuir o número de canais estrangeiros ou ter que veicular conteúdo nacional de qualidade discutível.”

Para Fernando Dias, presidente da Associação Brasileira de Produtoras Independentes de TV, não há risco de falta de bom conteúdo. Sua associação, ele diz, reúne 115 produtoras independentes que já exportam programação para outros países, como Canadá e Japão, que nem chegam a ser conhecidas no Brasil.

“Os grandes mercados do mundo já criaram formas de preservar e estimular a produção local; o Brasil é a exceção”, ele diz, afirmando que as cotas são importantes para incentivar um mercado que pode criar mais renda e emprego.

Não há igualdade de competição entre brasileiros e estrangeiros hoje, afirma Dias, porque os produtos norte-americanos fazem economia de escala e são vendidos a preços baratos no mundo todo.

Também o apresentador Marcelo Tas defende as cotas, embora diga que elas não são suficientes como política pública para a TV no país. “Temos que parar de ser ingênuos, de falar que não precisa proteger a produção brasileira. Isso é de uma ignorância comovente. Para existir, os americanos, franceses e alemães também protegem seus mercados.”

“A gente precisa se ver”, diz Tas. “Essa é a função da arte, do cinema, da comunicação.” Ele afirma ver uma “burrice empresarial” na TV brasileira, que não percebe que já é o produto nacional que mais atrai público e que tem a melhor qualidade. “A emissora líder [Globo] é a que mais está atenta a isso. Se você investe em audiovisual com produtos com que o público se identifique, ele vai atrás.”

A opinião é oposta à de Marcos Bitelli, especialista em direito da comunicação e consultor da associação que representa as programadoras internacionais. Ele defende que o consumidor não terá benefícios com as cotas para TV paga, que terminará por ter limitado o seu direito de acesso a diferentes conteúdos.  “Quem assina a TV paga procura uma alternativa à TV aberta”, ele diz. “Não é uma uniformidade de programação o que se espera da TV por assinatura. O acesso à diversidade cultural é que a caracteriza -ali você vai encontrar canal italiano, francês, inglês etc., e escolher o que quer assistir. Imagine uma lei exigindo coisa semelhante na internet”, compara.

Projeto ainda pode sofrer modificações

O relatório produzido pelo deputado Jorge Bittar (PT-RJ) que estabelece uma série de cotas visando estimular a produção de conteúdo nacional e independente na TV paga ainda pode sofrer alterações.

No dia 4 deste mês, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva declarou apoio ao texto: “A emenda 29 está pronta, está acordada, acertada, e nós já queremos colocá-la em votação na semana que vem”.

Como o projeto havia saído da comissão em que Bittar é relator e sido encaminhado para outra comissão da Câmara, a votação em plenário só seria possível se houvesse acordo entre as lideranças partidárias que lhe dessem regime de urgência. O acordo não ocorreu.

Quando o texto voltar à Comissão de Ciência e Tecnologia, Comunicação e Informática, onde foi relatado por Bittar, no ano que vem, o deputado não estará mais lá, já que assumirá a Secretaria de Habitação na nova administração municipal carioca.  Ele diz que deixa o projeto substitutivo pronto. “Não tenho garantias formais de que votarão o substitutivo, mas tenho garantias políticas.”